Muito comovida com os acontecimentos recentes, resolvi me dar um tempo
e um espaço. Peguei minha mochila e a velha toalha encardida, e marquei de
encontrar meu grande amigo Douglas Adams aqui bem pertinho bem de nós, no
restaurante do fim do universo[1].
Para quem não sabe, nós somos e estamos na periferia mais periférica de todo o
universo, e não apenas daquele que é conhecido. Alguns dizem que é por isso que
os terráqueos tratam os mais fracos como periféricos; é uma sindrome de
reprodução cíclica de uma condição inalienável: somos a periferia do mundo,
querendo que o outro seja sempre mais distante e insignificante do que nós
mesmos sempre seremos.
Não, nós não explodimos[2],
e isso é uma pena.
Atualizei o Douglas sobre as últimas notícias politicas e sociais, e
ele com seu pensamento rápido, típico de um físico e comediante inglês me
disse: nem mesmo Zaphod Beeblebox seria tão crápula quanto o golpista do país
de vocês. _ Pior que é verdade, respondi.
_Quanto ao STF, você tem certeza de que não são Vogons disfarçados?
_ Temo que não. São apenas humanos sórdidos mesmo.
_ Mas poderiam ser Vogons, ele insistiu.
_É, poderiam ser Vogons, mas
talvez sejam até piores. – Acenei com a cabeça.
_Eu vou te levar em planeta muito especial, você vai gostar. Eles
também evoluíram de um mamífero simples e doces, como nós.
_ Muito animador... eu disse. E
eles também se metamorfosearam em estupradores de crianças, como nós?
_ Sim. Ele afirmou, com aquele sotaque sarcástico.
_Por favor, não seja cínico, eu tenho aguentado demais e...
_ Mas a situação agora é outra. Eles não são um planetinha medíocre de
60 milhões de anos, já se passaram lá mais de 300 milhões de eras... Eu quero
te dar esperança, minha amiga viajante.
Pegamos carona em um coletivo estelar e escolar. Foram alguns anos-luz
de gritaria na minha cabeça, já atordoada por uma dose do melhor drinque do
universo. Minha melancolia era total. Eu só pensava se aqueles seres infantis,
de formato e solidez indefinida, meio gás e meio luz, também eram sujeitos à
violência de gênero. Foi então que eu soube que quando adultos, eles se
reproduzem por solução aquosa, e que, portanto, não tinham sexos díspares. – Esses sim tiveram a sorte de evoluir de algo
fantástico, pensei. Mal fiz essa avaliação e já senti a pressão tenebrosa da
dobra do espaço-tempo. Sempre me deu ânsia de vômito, mas eu nunca vomitei.
Quando pisei em solo firme a sensação de vertigem passou
completamente. Fiquei maravilhada! O mesmo ar fluído de respirar, o vento,
que delícia um planeta onde venta! Barulhos absolutamente comuns para meu
simples aparelho auditivo – se bem que com muitos grunhidos – pelas enormes
árvores que eu vi, podia pressentir que havia até mesmo água por ali. Pus um
peixinho-tradutor dentro da minha orelha, e segui meu amigo lunático.
Era interessante que nenhuma via era plana, todas as ruas eram intercaladas
como prateleiras, umas sob as outras. Não vi veículos sob o solo, mas de longe,
avistei uma frota que voava abaixo da atmosfera. Divagando entre as
características que se aproximavam de terra natal e as diferenças exóticas, mal
percebi quando uma voz sibilante e feminina nos deu as boas vindas:
_Sssejam bem-vindas, todas vocês!
Todas vocês eramos: eu e o Douglas. Curioso ela usar o feminino, já
que estavamos em uma paridade de gênero e o usual é que o tratamento masculino
seja preponderante. Apertei meu meu peixinho dentro da orelha; devia estar com
defeito de tradução.
Porém, mais curiosa era a figura que nos recebia. Completamente nua,
havia em nossa frente uma gata de quase dois metros de altura, apoiada em apenas
duas patas que, com seu perfeito polegar
opositor segurava algo que eu entendi ser uma arma grande e espinhosa.
_Sssssigam-me, por favor. Milady já asss esspera.
Fomos recebidos por outra felina dadivosa. Um pouco mais baixa que
anterior, mas não muito, tinha o pelo cinza azulado, que parecia um veludo
molhado antiquíssimo, inscrutrado com
duas esmeraldas verde claro, que eram os olhos da gata espetacular.
_Você é a terráquea que o Doug falou. Ele me contou tudo, macaquinha.
Acho tão engraçççado vocêsss terem evoluído do macaco! Só podia dar em comédia mesmo.
Macacos são seres circenses por natureza. Você, aí que bonitinha! Tem a mesma carinha
da minha pet de estimação, assim,
branquinha, parece um mico-leão-sem-rabo. _Meninasss! – se dirigiu a outras
duas gatonas que estavam na porta. – Tragam a Sissi aqui para ela ver se não é i-gual-zzzi-nha
a ela! – Você vai se sentir de frente a um espelho em miniatura, me garantiu.
Será que ela sabia que eu tenho dois gatos de estimação e por isso
me afrontava com a humilhação de ver um pet
que tinha exatamente a minha cara? Essssa mulherzzzinha conhecia a realidade da
Terra? Onde muitos tementes a uma espécie de inteligência divina que chamam de
deus, acham um absurdo quando a ciência diz que evoluímos do macaco? Ela tinha
ciência de que chamar alguém de macaco no meu planeta é uma ofensa cruel e dolorosa, que implica em
séculos de sofrimento humano? E que muitos terráqueos prepotentes se acreditam
distantes de sua origem evolutiva somente porque têm a pele clara?
_SSSeja benvinda a nosso humilde planeta, terraqueazzzinha! Doug, pode
sentar aqui no chão ao meu lado. Terráquea, sente-se nessssa chaissse, por
favor.
Doug era o Douglas? Quanta intimidade, pensei. Típico de gata
assanhada. Porque o Douglas se sentaria no chão? Realmente, a parte mais
intrigante das viagens intergaláticas são as culturas completamente
antagônicas, pensei, mas me calei.
_Eu me chamo Missy e sou a presidenta desse planeta.
_ Oh, que coincidência, você é a presidenta do país, a gente também
tem, ou tinha uma...
_Do paíss não bobinha, do planeta, me ressspeite, macaquinha!” – e
riu, leve.
_É que... eu não entendo... como vocês fazem eleição de um planeta
inteiro, senhora, excelentíssima, quer dizer, sua excelência... putz me perdi...
Dona Missy... é que... (Anúbis, não me leve! Bastet, Deusas Egípcias, me
ajudem! Ela vai descobrir que sou do signo de peixesss e vai me devorar,
socorro, eu nunca estive na frente de uma presidenta de planeta!)
_Calma, babuinazinha sem pelos. Meu planeta já foi muito parecido com
seu.
_ Como? – Não perdi tempo. Sabia que o Douglas tinha me levado para
aquele planeta-prateleira por algum motivo. Fiz algumas conexões rápidas. Era
sobre a política? Era sobre os animais?
_Nossos machosss tem espinhosss no pênisss, vocccê sssabia?
Sabia. Era sobre estupro. Ai, não, era isso! Era sobre estupro! Sim,
gatos estupram gatas, pegam à força. Se não conseguem penetrar a vagina,
penetram o ânus. Rasgam suas vulvas quando tiram os pênis espinhosos com
violência. Lembrei-me dos gritos sob os telhados...
_Quando estávamos no período histórico que vocês estão, a pré-história
dos primeiros 5 mil anos, asss coisasss eram muito diferentess por aqui... Vou
passar um holograma explicativo ali naquela sssalinha. E aí você tira as suas dúvidasss.
Mas que macaquinha mais bonitinha! Tem certeza que você não quer um piresinho
de leite? Macaquinhos adoram leite!
Agradeci explicando que macacos adultos não tomam leite, e fui ver o
holograma. Eles, ou melhor elas, são bem competentes no que tange a sétima
arte. No início da era delas, era tudo bem parecido com a gente aquilo que nós chamamos de pré-história. Os caras
puxavam as gatas pelos cabelos, arrastavam para as cavernas e abusavam da força
física para copular. Com o passar do programa fui percebendo algumas diferenças
fundamentais. As mamães gatas não ficavam nas cavernas cuidando dos filhotes.
Ensinavam cada qual a lamber seu próprio corpo, e assim que os bichanos desmamavam,
elas iam embora. Nada de cuidado com o lar. Nada limpar o chão, de panos, de
fogos, de alimentos na boca. Cada bicho aprendia a chupar a sujeira do próprio
pêlo e se virava. Morriam mais machos, nem é preciso dizer. Mas ainda que
alguns filhotes morressem, aqueles que sobreviviam eram mais ágeis no ataque às
presas, condição absolutamente necessária para ser um gato ou gata
pré-histórico. Em especial as fêmeas se viravam... Assim, a população feminina desse
grande gatil se constituiu bem maior que a masculina. Começam a surgir as
cidades verticais, os arados para terra, a canalização das águas... Talvez por
conta da maioria feminina, nesse momento a força física não imperou sobre a
inteligência. Havia gatas e gatos nas mais diversas funções. De caçar ratos até
governar. Vi gatas e gatos em diversas funções sociais e políticas. Ninguém
ficou responsável pelo cuidado do lar. Mesmo assim, ainda houve séculos de
estupros.
Gatos espreitados nas esquinas, pegando gatinhas jovens bem indefesas,
gatos que em bandos “amassavam” uma única gata. As vezes mais de 30. Foi então
que se deu o que elas chamaram de “Revolução daz’unhass”. Num determinado
momento dessa longa antiguidade as gatas perceberam a força de suas unhas e
dentes. Em um motim popular, na maior cidade do planeta se iniciou a revolta
que rapidamente se espalhou. Gatas de todas as cores e tamanhos passaram a se
engalfinhar contra os machos. Metiam-lhes az’unhas na cara, nas pernas e
principalmente no escrotos. Surgem os movimentos “Furar bolasss” e “Garras
Felinistas”. As Felinistas (realmente) Radicais inventaram um dispositivo digno
do pior pastor cristão: um porrete cheio de espinhos, como um falo felino, mas
um tanto quanto maior. Em grupos, elas passaram não apenas a se defender, mas a
atacarem os machos. Enquanto elas apenas se defenderam, os estupros continuaram.
Quando elas mudaram de estratégia, a coisa toda se modificou. Muito sangue foi derramado,
é verdade. A natalidade decresceu; deu pena ver os filhotinhos fepuldos
minguando nas ruas. Mas segundo as historiadoras, os motins populares ocorreram
por pouco tempo... cerca de 2030 anos, apenas!
Particularmente, eu não acredito que essa seja a solução para o nosso
mundo, o dos macacos. Os felinos, e principalmente as felinas, são predadores
natos, exímios caçadores, correm, saltam alturas. Eu entendi o ponto do Douglas
e da Missy, mas acho que a violência num planeta de macacos pode virar apenas
uma palhaçada sombria. Pois os gatos são muito mais inteligentes que nós, e,
pelo que percebi, em um determinado momento eles deixaram de se atacar e
passaram a fazer o que de melhor sabem, que é dormir. Essa é a segunda parte da
história deles. É a tal da “Revolução Ronronástica” que durou por mais dois mil
anos.
Desde o príncipio do holograma, nenhuma gata ou gato tentou impor
espiritualidade uns aos demais bichanos. Elas e eles nasciam naturalmente
ambíguos, violentos, e ao mesmo tempo pacifistas. Espiritualistas sem pressa.
Essa revolução porterior as chacinas daz’unhas, me pareceu um período de yoga e
terapia coletivas, sem que ninguém dissesse quem era, ou o que era deus, e
também sem erguerem uma igreja sequer. Foi assim que o planeta ressurgiu: dos
escombros das lutas por direitos para as fêmeas.
O período de vínculo individual de cada gato e gato com seu interior
criador gerou aquele sentimento de acolhimento que só os bichanos conhecem.
Voltaram a namorar com gentileza, a rezar com o coração, e a construir sem
arranhar. Pois, pensei, era possível então?
Sai da sala de holograma atordoada e um pouco triste. Estava difícil
conter as lágrimas. Nunca seríamos felinos. Somos macacos que fazem macaquices
cruéis para nos divertimos as custas dos outros. Missy e Douglas estavam
deitados gatamente um sobre o outro fazendo ronron. As guardiãs brincavam com
bolinhas de lã.
_Vocccê entendeu, macaquinha? Também fomos violentasss, e hoje somosss
apenas pazzz. Tenha esssperançasss...
_Excelentíssima senhora Missy, eu compreendi sua lição, tanto de luta
quanto de paz. – as lágrimas rolavam sem que eu pudesse me controlar.
_O miquinha-adorada, venha aqui que vou fazer pãozinho na sua barriga.
Não fique assim. Vai passssssar...
Fiquei algumas horas naquela paz felina, recebendo os cuidados régios
que só os descendentes de leoas sabem merecer. Mais calma, pude refletir sobre
tudo o que aconteceu no planeta Leo Felis e no planeta Terra também. Nós
precisamos de uma revolução feminina e espiritual, falei. Douglas concordou
comigo, e decidimos pegar a toalha de volta para a casa.
Mas antes, eu indagnei uma das guardiãs:
_Onde é a tolalete, miss?
_ É por ali, sssenhora.
Como eu não adivinhei?
No cubículo não havia nenhuma toalha ou lencinho. Logo que pisei,
senti a areia macia e bem cuidada sobre meus pés.
A resposta, vocês sabem, é sempre 42.
[1]
Esse texto é livremente inspirado no Guia do Mochileiro das Galáxias, de
Douglas Adams, e é também uma tentativa de prestar homenagem a meu
escritor de ficção científica favorito, ainda que sem seu brilhantismo e
conhecimentos acerca do Universo.