sábado, 19 de fevereiro de 2011

desconfiança

tenho motivos suficientes para acreditar que a sua morte, acidente sem fumaça, sem destroços e sem corpo, é um daqueles casos em que o suposto morto cria toda a fábula, no intuito de receber seguros e honrarias que para você, e neste caso, só se dariam numa situação fatal.
um dia antes do suposto sinistro, você ainda tentou nos avisar, por meio de telegrama, do carinho que tinha por todos os parentes, mas sem dar indícios reais dos seus planos de acabar com uma existência para criar outra, como desconfio. depois desta carta foi silêncio. temendo pelos filhos e mulheres que você deixou, busquei o correio aéreo. foi quando eu soube do infortúnio.
disseram que vc desapareceu nos ares como Saint Exupéry. quando penso nisso, sempre olho no espelho. meu cabelo loiro e embaraçado me dá a certeza e a confiança de que eu fui, na sua existência sufocada, o seu pequeno príncipe. depois eu me lembro da raposa, e desfoco dessa idéia: não, não! é preciso sobreviver para amar.
e a sua escolha foi mais covarde que aquela feita pelos suicidas. você morreu para nós, você que nos criou, que desejou profundamente nos alimentar de seu ventre, de seus seios murchos. entendi depois algumas coisas... não é possível comer quando não há mantimento, nem beber sem líquido, e afinal, de que adianta nutrir quem está fadado a um acidente inventado?
de nada adianta. jamais.
nos primeiros dias eu acompanhei a equipe de resgates: eu queria uma prova. um osso roído, uma carteira de cigarros amassada, carne debaixo das unhas. é sabido que nada encontrei, porque nada havia no local. absolutamente nada.
tive de explicar mil vezes  o que já era esperado. sim, todos morrem, e aqueles que morrem de dentro pra fora tendem apodrecer antes.
nós sentiamos no seu hálito - de cebolas, carne de porco, saias e cigarros -  que por dentro você já estava parcialmente lesionado. analisando por esse aspecto fétido, era pra você realmente ter morrido.
mas o último esforço do morimbundo é sobreviver mais um instante.
você que criou este acidente intransponível, sabe que sequer chegará a receber os louros de uma morte fraudulenta. ao contrário do que você possa pensar, nós não vamos procurar as Três Feiticeiras para lhe impor o destino de Macbeth. a sua marosca não foi por medo de filtros e cardos. ela foi medo do carcinoma que você cavou em seus próprios ossos.

Um comentário:

  1. ai. essa doeu.

    ps: seria uma honra ter um texto ilustrado, o texto que também é teu.

    ResponderExcluir